(1) e (2) s/ título, 2020
Materiais riscadores sobre papel
100x70 cm
Pedro: A confidência será a mensagem ou segredo levado a cabo ao confidente – a quem se confia, como uma carta de amor. Uma mensagem que não pede necessariamente resposta, não é senão em si condutora para uma conclusão, a de que se ama alguém. O amado/ confidente, o portal aberto para o desconhecido – intentamos descobrir o irreconhecível: a resposta que é quase uma espécie de janela para o que caminha fora do que pensamos conhecer.
O criador investiga indo do conhecido para o desconhecido, fazendo o percurso inverso do investigador criminal. O criador procura um vestígio que lhe vem do futuro – e que é memória de um passado absoluto. A obra de arte é o reverso de um crime (mortal): o artista volta ao local onde ninguém esteve para repetir o dom natural: o acto de dar (a) vida. A obra de arte é o eterno retorno do que não existiu. E tal é o desejo de criar: que isso, que nunca foi, possa voltar, outra vez, sim, uma vez mais...
No que toca à criação artística, a confidência do artista pode ser transposta para este exercício do olhar voltado para o desconhecido. Recorro à noção de janela através de Rosalind Krauss em GRIDS, não como resposta mas como hipótese para «ver além de». Segundo Rosalind Krauss em The Originality of the Avant-Garde and other Modernist Myths, Grids é inicialmente a estrutura emblemática de um dos aspectos da ambição modernista: “announces modern art’s will to silence, its hostility to literature, to narrative, to discourse”. Já em Mondrian compreendemos uma recusa do discurso da evolução: reclama a sua autoria como arte de estrutura, a sua organização é resultado não da imitação mas de uma experiência totalmente estética. Podemos lembrar as Grids nos estudos minuciosos de perspectiva de Leonardo da Vinci, Paolo Uccello, Dürer; porém a perspectiva era o portal que abria a pintura para o conhecimento entre real e a presentação do mundo, instituía a ciência do real e não o seu afastamento.
Queria, no entanto, falar da estrutura segundo os simbolistas, que aqui ganha uma dimensão metafísica e, por isso, recorremos muito mais à interpretação da obra do que a sua imitação. Nos simbolistas, a Grid aparece como forma de janela e a sua intervenção geométrica pressupõe um caminho para fora do nosso olhar. A janela emite uma experiência opaca e transparente ao mesmo tempo que vemos através de; a luz que se movimenta para dentro de; também funciona como vidro. Ora, sendo vidro, desdobra a luz que entra e reflecte-a, ou melhor transmite-a. Aqui a opacidade funciona como espelho e “freezes and locks the self into the space of its own reduplicated being”. Em francês, o termo «Glace» significa não só vidro mas também, espelho e gelo – com o brincar do vocabulário e, seguindo os pensamentos de Krauss, apercebemo-nos deste conjunto de linguagem que perfaz a interpretação da janela: transparência, opacidade e água. Ora, participando do sistema de associação: “towards the flow of birth - the amniotic fluid, the "source" - but then towards the freezing into stasis or death - the infected immobility of the mirror”. Apresentando-nos uma multiplicidade de sugestões, a janela enquanto estrutura “matrix” parece funcionar como este multinível de representações.
Joana: Creio que o facto de teres adoptado uma visão simbolista (que, como disseste, não te sendo corrente, se aplica agora) foi o que mais me prendeu no teu texto. Reconheço que também eu direccionei a questão para semelhante interpretação, nem que puxando pelo carácter poético do conceito.
Prendeste-me aqui principalmente porque destacaste um símbolo que acompanha a história da pintura em quase toda a sua extensão. Um símbolo que, de facto, condensa essa abertura para o desconhecido, que é própria da criação, intemporal à história do fazer da pintura - mas também um símbolo que em si reflecte tão bem o factor transitório na procura de uma verdade na criação (ou pela criação). A Grid, que é realmente este objecto simbólico, simboliza essa janela mas também a evidência de que houve várias maneiras de pensar a verdade da janela através deste simbolismo. E aqui, gostava apenas de contribuir com a ideia de que também a confidência é um objecto tão transitório, carácter que diria ser inerente ao que implica o gesto de passagem, de viragem - esta disponibilidade para o risco, que recolhi também da tua reflexão sobre o desconhecido.
Todas as palavras que elegeste e sobre as quais te alongaste - o vidro, o espelho, o gelo - me prenderam também pela maneira como fixam uma imagem. São palavras bastante figurativas, que mais uma vez entram numa certa linhagem simbolista. Mas que, também neste ponto da tua reflexão, apontam um sentido de mobilidade.
Deixo esta pequena ideia, que me surgiu do teu texto: nas tuas obras há a possibilidade de confiar na superfície da tela ou do papel - quero dizer, as tuas imagens existem inteiramente nas qualidades do plano. Também este tipo de existência, para mim, se dirige a uma ideia de janela.
Pedro: Convém afirmar que a reflexão das GRIDS no que diz respeito à prática simbolista e ao seu agrupamentos de palavras que pressupõem a cima de tudo a nossa interpretação é um raciocínio directamente retirado de Rosalind Krauss - limitei-me a interrogar o papel desta Janela que, como disseste e bem, ultrapassa a história da arte (pelo menos enquanto uma progressão de acontecimentos - é de facto intemporal e não pertence a uma cultura, pertence à humanidade). A confidência torna-se num termo misterioso, onde está patente este véu por descobrir - do segredo. Procedendo a uma pequena analogia, não seria senão a premissa de que o amor não é belo em si, ele não possui beleza, antes procura-a, no discurso do Banquete em Platão. A confidência é em si o caminho por se descobrir.
Ora, isto transposto para a criação artística quando me defronto diante do papel/tela/objecto por se criar o que existe é este olhar para um abismo, um abismo com escadas e materiais para nos mantermos vivos. Existe chão, não há perigo eminente a não ser realmente quando não nos propomos seguir esse caminho desconhecido. A partir do momento em que me decido sobre o acto de criar, estou a construir chão - um chão de areia? O que existe por debaixo? Que confidência existe por debaixo do mundo?
*
Joana: Reflectindo sobre a tua prática e na ideia de que a obra de arte poderia ser o fruto de uma troca de confidências, dirias ser pela própria obra que se revela, ao espectador, o objecto confidencial (o “segredo”)? Ou é esta obra que detém a condição confidencial desse objecto?
Pedro: Espero ter captado bem a essência desta primeira pergunta apesar de se poder mostrar labiríntica. No que toca aos frutos da confidencia enquanto partilha, se a obra que se revela ao espectador é o «segredo» (quem o vê, nisto estará implícito todos nós até o próprio criador) ou se mantém o seu véu de confidencialidade. Existe a tentativa de descobrir, de nos atirarmos perante essa revelação. Acontece-me muitas vezes que penso ter compreendido algo como se aquilo tivesse sido sempre verdadeiro e absoluto e, eu é que não estava a par. No dia seguinte posso-me deparar com o mesmo objecto e ter deixado de o compreender novamente. Será que o objecto em si não tem qualquer valor confidencial e, eu que oscilo entre o que sinto é que me escondo sob este véu de confidencialidade e repercuto na obra para que me forneça essa revelação?
Joana: No teu trabalho ou na tua prática, qual é o espaço para a existência de comunhões entre um sentimento vulnerável e um sentimento destemido; um gesto confiante e um gesto inseguro?
Pedro: Não sei se consigo traduzir totalmente o que acontece no momento da prática artística. Esse momento confunde-se com a grande etapa investigava - a primeira insegurança é perceber: de que coisas me rodeio? Dado que costumo colectar frames de filmes/cartoons, brinquedos, objectos ou ferramentas, signos lusitanos ou emblemas (...), o processo investigativo é o criar no campo das ideias. Ainda antes de me confrontar com o papel/tela/objecto já estou a criar, o que acontece aqui é que me proponho a descobrir. Às vezes há um gesto mais frágil para que recorra de imediato ao seu apagamento - esse apagamento por sua vez, é decidido com confiança já que não me deparo com o "vazio" do que intento criar. Muitas das vezes, e falo do desenho que é o exercício que mais pratico, é o resultado de muitos gestos inseguros. Ás vezes esqueço-me de combater os meus próprios preconceitos da imagem e, o desenho que estaria mais ou menos resolvido de repente é nutrido por riscos irreflectidos.
Joana: Há, de alguma maneira, outro corpo para a existência das tuas narrativas, que não o desenho ou a pintura? Seja, num espaço tridimensional, talvez animado, consegues projectar estas figuras e as suas narrativas?
Pedro: Confio no papel e na tela - não confio exclusivamente. Ultimamente tenho utilizado tudo o que me é próximo, confio na cadeira que pinto, nos lençóis às riscas que engrado. Claro que não consigo confiar totalmente, estamos sempre a desconfiar, mas é-me muito íntimo o facto de que tudo o que é da vida é suficiente para podermos trabalhar - o que fazemos com isso é o tal caminho por descobrir. Confio no plano de um tela como confio no acto de "esculpir" tridimensionalmente; confio no som; confio no poema e na escrita. Esta é uma afirmação que deixa de lado a ideia modernista de (falsa) progressão e, de que o movimento que se seguia fazia melhor/descobria melhor, e era em si o «mais» puro por excelência - deixo de lado principalmente a ideia de que a arte só pode falar sobre arte e/ou a sua desconstrução. A tela é suficiente como qualquer outro plano e, pode dizer as coisas mais pequenas do mundo. Quero acrescentar ainda que, por vezes, recorro até a um tom humorístico do fazer a arte (confundindo-se também com a sobriedade da vida).