(1) S/ título, 2019
Tinta da china sobre papel manteigueiro 100gr
21 x 29 cm
Marco: Sobre as obras que tenho vindo a desenvolver nos últimos dois anos, posso afirmar que nascem todas de um lugar-comum ou de vários lugares que se relacionam entre si, sendo os mesmos: bosques; serras; montanhas... Quando afirmo que estas obras "partem" ou nascem de um lugar relembro-me da questão já abordada na filosofia do velamento-desvelamento, eu quero acreditar que ao criar nestes lugares dá-se um desvelamento ou velamento das coisas que me rodeiam encaminhando assim uma futura obra. As coisas existem inanimadamente ou animadamente e é no desvelamento que acontece a confidência, as coisas e a vida mostram-nos algo no qual somos cúmplices apenas desse momento. Um gesto de um sistema para com o artista."
Joana: Consegui criar mentalmente uma imagem a partir da ideia que me trouxeste: essa ideia de uma obra que emerge do momento que várias coisas criam, uma imagem desse momento que é congelado, feito estático - esta imagem parece-me ser quase como que uma primeira existência da obra.
É interessante pensar que este momento é tido como o momento em que se confidencia - que este momento cria também a própria confidência. Como se não houvesse até ao momento nada a confidenciar e que é no confronto com estas coisas - animadas ou inanimadas, como disseste - que emergem, individual e colectivamente, objectos que são só daquele momento e das coisas (eu, as outras coisas) que o fazem, que por isso são objectos confidenciais. Não quero com isto dizer que a obra é um objecto confidencial - na minha opinião, estes objectos são forçosamente anteriores à obra.
Achei curioso usares o termo cúmplice, para definir o artista perante o que se manifesta exteriormente a ele - perante a vida.
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Joana: Reflectindo sobre a tua prática e na ideia de que a obra de arte poderia ser o fruto de uma troca de confidências, dirias ser pela própria obra que se revela, ao espectador, o objecto confidencial (o “segredo”)? Ou é esta obra que detém a condição confidencial desse objecto?
Marco: A obra de arte pode ser o fruto de uma troca de confidências, mas no meu caso prefiro que seja unilateral, ou seja, é fruto de uma captação daquilo que vivo, a vida confidencia e eu não lhe confidencio nada. No meu caso vai sendo categorizada, arquivada, nomeada levando-me a compreender melhor o segredo que me foi dito/mostrado. A obra é um outro sistema criado por mim, constituído por inúmeros acontecimentos pessoais e sociais, da minha memória e acredito que a sua origem seja motivada por algo em específico que acontece no tempo e no espaço.
Joana: No teu trabalho ou na tua prática, qual é o espaço para a existência de comunhões contraditórias - como entre um sentimento vulnerável e um sentimento destemido; ou entre um gesto confiante e um gesto inseguro?
Marco: Costumo pensar muitas vezes sobre a minha presença em espaços rurais e naturais e na forma como o meu corpo tem impacto naquilo que me rodeia. Refiro-me a, pensar o corpo como quem caça ser furtivo, silencioso, mestre na imersão. Enquanto artista, se quero ver algo inalterado pela minha presença como o faço? Como é possível a anulação do corpo? Como coabitar e criar ou movimentar-me sem afugentar?
Joana: Quando regressas ao lugares de onde uma vez surgiu o ímpeto de criar, há a possibilidade de os habitar independentemente desse marco?
Marco: O ímpeto de criar muitas vezes está em segundo lugar sendo a primeira a vontade de me deixar deslumbrar, de simplesmente conhecer, ver, deixar acontecer, a criação logo se vê. Eu tenho memórias do que vivi nos lugares e esses são marcos que existem e surgem quando querem, quando retorno. É impossível regressar sem memória.