(1) A mulher mais sortuda do mundo, 2020.
Técnica mista e colagem s/ papel, 26,5x23,5cm.

(2) To wipe someone's face, 2019.
Óleo s/ tela, 20x15cm.









Joana G:  Que interessante conversar sobre este tema, que me vem à cabeça tantas vezes enquanto trabalho. De facto, por coincidência, o tema da confidência não me é estranho e acho que até posso dizer que costumo trabalhar a pensar nele. É-me inevitável aqui referir a palavra segredo. Posso fazê-lo? Acrescenta-se aqui algo um pouco mais corrompido, parece-me.
Ou seja,

Quando falas de confidência referes muito pertinentemente as associações livres a confiança. Depositar confiança no outro para que este se torne receptáculo, uma espécie de vaso para algo que já não cabia bem em nós. Transbordo por isso transmito-te esta confidência - tudo aqui parece bem-intencionado, construtivo, um trabalho sincero a dois. Ao Ier em confidência o conto de um segredo, como me é irresistível fazer, parece-me que introduzo os elementos da omissão e até da mentira, e acho que isto ocorre assim porque em criança ouvi dizer que esconder é mentir. Uma frase que poderia ser discutida, naturalmente, mas que causou grande impacto numa versão mais jovem de mim.

A nível pessoal encarei muitas vezes o segredo como uma das formas mais eficazes de controlo da minha privacidade e até de emancipação. Por mais que o meu dia-a-dia sofresse interferências externas o segredo parecia-me sempre uma forma eficaz de preservar algo exclusivamente meu, a que mais ninguém teria acesso. Nesta leitura deixo de parte o confidente e volto ao teu texto: o trabalho podia e de facto assumia esse papel! E assume muitas vezes! O trabalho confidente. O trabalho que ouve. O trabalho que mostra aos outros, sem contudo quebrar a confiança do sujeito, por não repetir exactamente o que lhe foi confiado. O trabalho tem esta forma particular de expor o segredo por palavras diferentes.

Em 2017 tentei várias vezes resolver a minha vida pessoal através do trabalho, da pintura, do desenho. Estava literalmente a confessar-me à tela, a tentar descrever visualmente - o mais fielmente possível - aquilo que me preocupava na minha vida pessoal. Tentava expurgar os meus problemas através de confidências sobre tela. Não resultou. Essas pinturas não resultaram. Não sei bem o que queria dizer com isto mas veio-me à cabeça e decidi contar-to também.


Joana:  É realmente inevitável reflectir sobre este assunto que te trouxe, quando me debruço sobre as tuas obras - foi o que me fez imediatamente querer trabalhar contigo. Torna-se agora evidente que as confidências não são matéria nova para ti.

Quando introduziste a palavra segredo para esboçar a tua interpretação do gesto confidencial - que melhor interpretei através da tua frase "Ier em confidência o conto de um segredo" - surgiu-me imediatamente a certeza de que este gesto, visto assim, é totalmente guiado consoante o outro objectivo - este confidente. Ou seja, que essa entrega, essa exposição, é estudada e executada de acordo com o corpo (quem, o quê) que está perante a pessoa e o seu segredo. As palavras omissão e mentira (tuas também) seriam talvez sempre inevitáveis na matéria do confidencial (o objecto confidencial está sempre omisso até que seja verbalizado, ou de outra maneira revelado), mas creio que na tua leitura enfatizam uma certa relação de intimidade a que é necessário chegar com o outro, este que até aí parece ser colocado à prova, talvez testado.

Talvez faça uma conclusão precipitada, mas onde fundamentalmente quero chegar é à maneira como falas da tua entrega à pintura, talvez só pontual - as pinturas que me descreves de 2017 -, mas que me pareceu tão interessante: neste acto de te exigires tanto a ti como ao fazer (ao material, ao gesto, ao pensamento) que se conceba uma segura e potente relação entre confidentes, onde possas realmente atingir o ponto ideal para te confessares completamente à tela e onde este ponto passa pela capacidade desta superfície te receber neste sentido. Não quero complicar demasiado este episódio de que me falaste, mas para mim é um curioso reflexo da leitura pessoal que me deixas, de todas as tuas reflexões sobre o que tem sido (e é) a confidencialidade na tua opinião e prática artística.

Não me irei alongar mais porque quero preservar a intimidade e despreocupação com que escreveste sobre este assunto.


Joana G:  Nunca tinha olhado para a questão dessa maneira mas sim, de facto deve existir uma adaptação da confidência ao confidente. Consigo encontrá-la se pensar nos momentos e pessoas com quem troquei confidências, e não será difícil arranjar algum paralelismo com a pintura.

Por alguma razão isto fez-me recordar as ocasiões em que pensei estar a partilhar algo de muito secreto e confidencial a alguém e acabei por encontrar uma reacção muito mais leviana do que a esperada. Uma confidência pode ser muito pesada quando não dita e tornar-se ridiculamente leve na resposta do outro. As confidências podem ser patéticas!

De facto essas pinturas pareciam-me patéticas. Aos meus ouvidos a palavra confidência soa solene, e a ti?

Também me soa muita empática, e aqui andamos em círculo, voltamos à confiança depositada no ouvinte, ou leitor, ou simplesmente no receptor. E, claro, a intimidade que referes!

Algo que também me ocorre poucas vezes é essa noção de teste - há de facto um desafio na entrega que uma confidência pressupõe.

Assim:
Querer fazer um bom trabalho, o melhor trabalho

Melhor enquanto mais (uma ideia que pode e deve ser questionada)

Quanto maior a entrega e o despudor da confidência, melhor o trabalho

(Confidência enquanto autenticidade/ uma espécie de nudez do espírito?)

Gostava que nos encontrássemos nesta conversa! Às vezes receio estar só a falar do meu lado, sem nos encontrarmos no meio.

Intimidade! - parece-me que existe na intimidade uma chave para a classificação de confidência. Pode uma pessoa reservada sentir que está sempre em confidência com o mundo, se lhe for muito difícil a auto-expressão?

A confidência parece requerer alguma economia de uso - se nos entregamos constantemente a confidências talvez estas acabem por perder força, ou até mesmo valor.

Confidência enquanto troca preciosa, frágil, de árduo ganho ou merecimento.

Confiança - como confiar num trabalho que se diz sempre confidência ou que parte sempre de confidências?

Como confiar num artista sempre confidente? É essa uma postura sustentável? Que energias requer a confidência?


Joana:  Realmente, tenho-me impedido de adoptar um estado de exposição que tu, por tua vez e a meu pedido, assumiste. Isto, porque me interessa mais ouvir as tuas reflexões/divagações/desconstruções, do que colocar mais para além do que coloquei (com a minha mensagem inicial) em cima da mesa. No entanto, como tanto mo pede, levo-me a pensar na minha própria prática artística em relação com as leituras pessoais que realizei do acto de confidenciar, também com as tuas interpretações sobre os mesmos aspectos.

O acto de confidenciar parece-me solene, mas também me parece aterrador; como também me parece uma coisa quase sem tempo, por todos os sentimentos que reúne e activa ao mesmo tempo - creio que quando nos expomos sobre aspectos que até aí foram só nossos, quando aprendemos pela primeira vez a verbalizar/realizar sobre este aspecto, passamos para lá de uma linha, dão-se alterações porque de facto houve um peso (por muito leve ou pesado) que se larga. Ou seja, há para mim um grande leque de motivações e emoções consequentes deste mantimento da confidência – de um secretismo -, e revelação de uma confidência. Mas para mim, este acto é no fundo uma revelação que realmente transforma, seja a fim de que estado de espírito for.

Para mim, também, pode no acto de confidenciar haver consciência, ou não, de um receptor. Como também já tinhas referido, o facto de não existir um confidente objectivo não implica que se esgote a possibilidade de confidenciar. E julgo que é mesmo esta autonomia, no gesto de exposição/libertação/vulnerabilidade, que define este mesmo gesto - quando transporto esta ideia de confidências-confidentes para a prática artística e compreendo como a confidência existe no artista, entendo que os objectos e corpos exteriores são tão seus confidentes como este artista é para si mesmo - e que objectivamente não existe um receptor, nem um ideal de tal coisa, mas mais um jogo de remates e ricochetes, de ideias e confissões, de vícios e consciencializações, entre todas as coisas e corpos que estão presentes no acto de fazer da obra (mesmo que não os saibamos enumerar!).

De facto entendo que quando procuramos a verdade de uma (ou numa) obra de arte quando a criamos, estamos realmente à procura de um equilíbrio entre uma total exposição e uma total omissão - onde esta verdade (a obra) possa ser realmente este ponto mais ou menos intermédio, mas que contenha sempre o fruto de uma relação-luta entre os dois extremos. E o artista será, creio, o que resta de tudo isso (que o é até antes da obra existir), que detém o que não pode (ou não deve) ser dito/realizado - será o confidente de tudo o que levou a, de tudo o que é, e será confidente juntamente com tudo o que com ele levou a e fez com que seja.

É curioso, porque as tuas imagens falam-me de personagens que confidenciam com "um qualquer", numa relação voyer consciente - onde cabe um misto de fragilidade e vulnerabilidade, com desafio e indiferença.

E aqui, respondendo às tuas questões, devemos sequer tentar tomar o artista como este alguém em quem confiar? Não será isso totalmente inútil?

As energias que a confidência requer são, como venho tentado dizer, demasiadas para serem limitadas, porque realmente todo o passo que atravessa a tal linha que mencionei, é cheio de condicionantes fechadas em nós mesmos (e dos quais não temos provavelmente consciência).


*



Joana:  Reflectindo sobre a tua prática e na ideia de que a obra de arte poderia ser o fruto de uma troca de confidências, dirias ser pela própria obra que se revela, ao espectador, o objecto confidencial (o “segredo”)? Ou é esta obra que detém a condição confidencial desse objecto?


Joana G:  O que me ocorreu primeiro é que, para mim, o trabalho ideal - o que procuro - é aquele que consegue desempenhar esses dois papéis em simultâneo. Um objecto que encerre intenção, energia, até urgência
- uma confidência com origem no primeiro acto do fazer, talvez nunca ouvida pelo espectador - mas que também seja capaz de participar numa intimidade característica do acto confidencial com esse terceiro elemento estranho - estranha intimidade com um desconhecido - o público. Tal como tu tão bem disseste quando procuramos a verdade de uma (ou numa) obra de arte quando a criamos, estamos realmente à procura de um equilíbrio entre uma total exposição e uma total omissão.


É bonita essa possibilidade de um objecto ser simultaneamente verbo e sujeito, segredar e segredo.


Joana:  No teu trabalho ou na tua prática, qual é o espaço para a existência de comunhões entre um sentimento vulnerável e um sentimento destemido; um gesto confiante e um gesto inseguro?


Joana G:  Não tenho distância nem objectividade suficientes para avaliar a forma como se manifestam essas comunhões no meu trabalho, mas sei que quero o espaço para elas infinito - interessa-me que um objecto carregue, tal como quem o faz e quem o vê, essa simultaneidade de extremos. Um objecto com dois pólos terá, desde logo, nessa dualidade, uma semelhança (e empatia) relativamente a quem o observa e àquilo que o rodeia.

A pergunta recorre à palavra inseguro, e de inseguro a medroso o passo parece-me curto, não me é raro desejar que o medo fique à porta nas horas de fazer, mas talvez até o medo seja permitido, acompanhado por uma destimidez ridícula, pateticamente desproporcional. É bom que em certas alturas apenas um dos pólos se faça sentir. Uma confidência precisa de segurança para se expôr. É preciso confiança para deixar uma marca assustada existir.


Joana:  Em que espaços (atelier, casa, espaços indiferentes) desenvolves o teu trabalho? Há alguma relação específica a criar entre ti e o espaço onde desenvolves o teu trabalho?


Joana G:  Sinto que estou e posso estar sempre a trabalhar independentemente do lugar. Lembro-me, por exemplo, de sentir que estava a trabalhar no velório da minha avó. A trabalhar e a não trabalhar, é claro, em simultâneo. Ou a trabalhar e a viver, sempre. Sem originalidade, trabalho frequentemente durante o duche - tento resolver composições. Mas, contraditoriamente, saí de casa dos meus pais por querer trabalhar com mais liberdade. Encontrei um atelier onde posso sujar o chão, as paredes, escrever coisas em todo o lado, fazer barulho, pó, desarrumar, arrumar, e isso é-me muito precioso. Gosto muito de sentir que posso fazer objectos tristes, macambúzios, até violentos, sem preocupar ninguém. Deixá-los respirar e decidir com tempo se quero partilhá-los ou não. No atelier estou sozinha, de porta fechada. Por vezes tranco a porta por dentro. Gosto de sentir que posso ser quem quiser, agir como bem entender. Sem magoar ninguém. É mesmo uma coisa que me faz sentir sortuda. No atelier falo sozinha e mexo-me de modos a que me nego em público - o atelier é privado, embora extremamente performativo.

Não vou ao atelier há mais de dois meses. Tenho trabalhado em casa. O trabalho adapta-se, eu adapto-me, o lugar é relevante, muito, mas ainda não me parece determinante.





︎︎︎