Duarte: Falar de confidências e de obras-de-arte pode vir a propósito da leitura do poema da Mariana Almeida Nogueira. Parece-me que as confidências dos artistas estão de relações cortadas com as suas obras-de-arte. Fazer arte e contar segredos são duas coisas que algumas pessoas fazem, mas não são a mesma coisa nem têm o mesmo valor. Às vezes afirma-se que dizer segredos é uma arte; por vezes escondem-se obras-de-arte. Contudo, não se diz de um coscuvilheiro, ou de uma pessoa secretista, que é um artista; e tal como não se diz que um segredo é uma obra-de-arte, também não se diz que uma obra-de-arte é um segredo - aliás, isso seria desvendá-lo e viria a despropósito.
Falar de confidências e de poemas é falar de mal-entendidos, de coisas surdas e de pessoas confusas. Destas coisas fazem parte muitas leituras de poesia, todos os poemas, e os artistas que dizem segredos às suas obras-de-arte. Um poema pode conter a palavra confidência - mas será mesmo uma confidência?
Joana: Concordo contigo quando referes o perigo (nesta matéria) de cair em deduções sobre o que a obra "quer dizer" - a obra não diz nada, ou não quer dizer nada. Logo à partida, creio que estamos aqui a sublinhar o facto de que as obras de arte não são objectos criados a fim de serem lidos, não são criados para ninguém - não trazem nenhuma confidência a ninguém. Tal como exemplificaste, o poema da Mariana não tem nada a confidenciar ao Tejo devido às suas próprias condições enquanto poema. Aqui, gostava de te deixar esta sugestão: as obras não confidenciam com um outro exterior, os seus ditos espectadores, porque não têm nada a confidenciar-lhes. Mas será que isso implica que o artista não faz da sua obra um confidente? Ou, que seja - as obras de arte não são sempre outra coisa, outra coisa do artista, antes de chegarem aos sentidos desse outro espectador? Deixo-te estas perguntas, porque pessoalmente tenho pensado no acto de confidenciar e no próprio objecto confidencial como algo que existe entre o artista (um confidente) e qualquer coisa que, noutro tempo e noutro espaço, encaminha a criação da obra de arte (mas que não é a obra).
Surgiu-me imediatamente a noção de que a expressão individual está sempre aquém ou além de ser comunicativa, e que no acto de confidenciar também isso poderá ser verificável.
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Joana: Reflectindo sobre a tua prática e na ideia de que a obra de arte poderia ser o fruto de uma troca de confidências, dirias ser pela própria obra que se revela, ao espectador, o objecto confidencial (o “segredo”)? Ou é esta obra que detém a condição confidencial desse objecto?
Duarte: Pode haver pessoas que fazem obras-de-arte e que trocam confidências com outras pessoas. As trocas de confidências, porém, não fazem parte da constituição da obra-de-arte; não existe osmose ou transformação de umas na outra. Acreditar que a obra-de-arte revela confidências do artista seu autor e partir em busca dessa confidência na obra é uma acção semelhante a procurar nas filhas as características das mães ou de algum familiar: em vão, todos os tios e primos emitem opiniões discordantes e descobrem semelhanças diferentes.
Por outro lado, acreditar que a obra-de-arte contém um segredo é uma crença alegre para os amantes de histórias de detectives. Depositar segredos nas obras-de-arte, confidenciar-lhes alguma coisa, é como pedir-lhes fiado: tal como as obras-de-arte são avarentas ao ponto de nunca fiar a quem pede, também nunca contarão o segredo que lhes confidenciámos, porque nunca o chegaram a receber. As relações entre confidências e obras-de-arte não são o caso, porque as obras-de-arte não confiam.
Joana: No teu trabalho ou na tua prática, qual é o espaço para a existência de comunhões contraditórias - como entre um sentimento vulnerável e um sentimento destemido; ou entre um gesto confiante e um gesto inseguro?
Duarte: Uma pessoa pode sentir coisas contraditórias e performar gestos contraditórios, como pode aliás ser uma pessoa contraditória ou ter uma mente polarizada. Num texto ou num livro abundam as contradições, mas de uma maneira diferente. Eu ser uma pessoa contraditória é diferente de o poema que eu escrevi ser contraditório. A diferença está em eu ser uma pessoa e o poema um objecto. A diferença é que eu posso tomar o gosto à contradição e o poema, enfim, não pode ter gosto sequer.
Joana: Sobre o teu poema "Ana the artist", penso na representação da ideia de ser-se forçosamente ingénuo. Esta personagem, a Ana, é representativa?
Duarte: Não sei se "a Ana" podia ser "a Isabel", ou "o Julião", ou "a Brites" ou "a Susana", mas acho que não. Não sei se "a Ana" chega para ser um personagem. Mas acho divertida a ideia de alguém poder ser ingénuo à força.