(1) ENQUANTO AQUI ESTIVER, 2020

Instalação
Arame, cola, tule, slime, tinta fosforescente, sensor e lâmpada
Dimensões variáveis (aprox. 200 x 160 x 180 cm)









Beatriz C:  Achei curiosa, e arriscada, a associação sonora de palavras de idiomas diferentes para tentar construir o significado de uma palavra. Acho que não é um processo muito rigoroso mas é GENIAL! Podia fazer-se crescer conteúdo muito diverso que conteste o valor da linguagem a partir de um método cujo ponto de partida é o som primeiramente, e a associação de significados posteriormente. Isso cria outras palavras/conceitos dentro de uma mesma palavra! Assim uma coisa quase Dada, mas sem a imprevisibilidade e com investigação.

Não me alongo agora sobre esse aspecto porque estou cansada e tenho tido pouca energia para tomar iniciativas (mentais inclusivamente). Precisamente por isso, ao ler o teu comentário percebi que a melhor maneira de escrever o meu é contando uma história recente. Esta história diz respeito ao que tem acontecido nos últimos dias e curiosamente, sinto que se relaciona “que nem uma luva” com o poema.
Ora:

Sempre julguei que as peças que faço são pequenos desabafos que não exteriorizaria de outra maneira. Da mesma maneira, sempre achei que a sua existência fosse respeitante ao momento do seu pensamento, ao período da concepção e, por fim, à sua exibição (independentemente das ferramentas utilizadas para o fazer). Findada a concepção elas deixam de me pertencer, no sentido ideológico sobretudo (mas também não são de toda a gente!). Entre a concepção e a exibição sobrava um vazio de não-existência das peças, mas também afecto da minha parte para com elas, enquanto criaturas. Inclusivamente, tenho sepultada no meu quarto uma peça que ficou estragada porque a registei dentro de água. Nunca tive coragem de a colocar no lixo mesmo sabendo-a desmembrada e eficazmente salva em vídeo! É como se ela fosse uma carcaça ou um osso que não quero largar; já não brilha, mesmo que pense nela.
Acontece que este mês tive de tomar a decisão de abdicar do meu atelier. A vida anda aos trambolhões ultimamente e vi-me forçada a cortar despesas. Com algum pesar e preguiça à mistura, fui arrumar e desocupar o atelier. Durante esta tarefa apercebi-me da tristeza que crescia a cada objecto que guardava, e ainda mais a cada criatura colocada em sacos de plástico. No final, restava-me apenas esfregar o chão com uma espátula (tarefa que durou cerca de 5h e ia-me partindo os dedos) e arrumar as peças na arrecadação da minha mãe. Este último passo (que antecedeu o episódio da Gata Borralheira) foi muito custoso. Senti que estava a abandonar as criaturas e, eventualmente, uma etapa maravilhosa da minha vida. É então que – após encher sucessivamente o elevador como se fosse uma salsicha e enfrentar essas subidas e descidas (quase) representativas dos tempos modernos – desligo a luz para fechar a arrecadação e uma das minhas peças que é uma flor (que tende a renascer em vários media) me encara a brilhar com o seu revestimento fosforescente e vívido! Literalmente, percebi que o vazio a que me referi acima é imensamente maior mas que não é de inexistência: a peça, que ficou ali abandonada (julgava eu), confidenciou-me precisamente a continuação da sua existência muito além das fronteiras do meu pensamento!
Percebi que a minha cabeça é que se esvazia, não as peças. A flor é de si mesma e de quem ela achar que deve ter essa pertença. Não pude decidir para meu proveito, mas ela alegrou-me enunciando a sua presença autoproclamada e revelando assim, que continuaria a ser um bocadinho minha na medida em que não me permitia que a esquecesse! Uma confissão é um pouco isto, a meu ver: algo que se partilha a um destinatário querido para não se fazer esquecer, a fim de partilhar um fardo (talvez); que se autodefine e elege o seu caminho de ouvido em ouvido e que se altera também por consequência das viagens. Para meu agrado, a flor ultrapassou-me à velocidade da luz!


Joana:  Quero iniciar esta minha resposta admitindo-te que a tua mensagem me comoveu muito. Tem havido, em todo o lado, falta de coisas que nos tragam ânimo - aquele ânimo que vem do carinho e vem da gratidão - sobre tanto da nossa vida que ficou suspenso, e tu trouxeste-me essa sensação de calor por me levares até um episódio que tanto me fala de ti como do que é estar e existir com as coisas que criamos. Por isso, obrigada.

Creio que antes de qualquer suposição ou directriz que se possa formular para perceber onde seguir com este projecto, o que procurei fazer foi colocar em cima da mesa um espaço para interpretação e subjectividade, a própria afirmação desse espaço. Ou seja, a verdade é que não me interessou definir o conceito de confidência ou do acto de confidenciar, mas antes apresentá-lo na sua mobilidade e flexibilidade - com a introdução de várias palavras em rede, que variadamente suscitam leituras diferentes nem que seja para o teor deste acto (palavras como intimidade, confiança, vulnerabilidade, coragem). Ao desdobrar a palavra pelas suas traduções e fazendo paralelismos com outras pela sua sonoridade/fonia, tentei brincar com o princípio desta rede. Que alívio que não te tenha feito tanta comichão.

A maneira como exemplificaste o teu entendimento de confidência, esse que existiu no momento que trocaste com a tua obra, entra no que tenho pensado ser esta forma de congelar, petrificar (frieze) no objecto toda uma experiência. Neste caso, falaria da experiência que o autor tem (e faz) continuamente com o objecto que cria, constrói, até ao momento que ele é livre, autónomo, como referiste - até ao momento em que já não pertence ao autor. Será este sentido de pertença que é inseparável do conceito de confidente? É assim que inevitavelmente tomamos as coisas que criamos? Onde ficamos neste ponto, quando pensamos que criamos jazigos para as nossas obras destruídas?

Também foi esta linha que segui quando sugeri que o conceito de confidência é inerente à prática artística - quando, ao formular motivações para esta forma de comunicação/partilha, resta fundamentalmente a essência de haver (de requerer) um outro, receptor. O texto que me trouxeste deixa-me a pensar agora sobre isto, sobre os "compromissos" e as "transparências" dos objectos artísticos, como talvez só neste segundo momento da autonomia do outro possamos entender como nós mesmos realizamos os gestos confidenciais.


Beatriz C:  “Será este sentido de pertença que é inseparável do conceito de confidente?”

Sim sim e sim! A confissão será, talvez, o acto de carregar um bocadinho de algo e, mesmo considerando que não temos o direito de possuir esse bocadinho, enquanto o carregamos temo-lo (mesmo que não seja nosso, repito). Ou seja, a meu ver, não estamos na posse do puzzle (que será o todo a que a confissão pertence, a pessoa, a obra, a paisagem, etc), mas quando temos em mãos uma peça do puzzle, ela é nossa, mesmo não sendo nossa propriedade. A ideia, no jogo, é que a peça circule até se encaixar nas restantes. Portanto, a confissão é essa peça em viagem que pertence a um todo (puzzle). Quando a temos, há que saber gerir muito bem o seu caminho (p.e. com quem a partilhamos) porque a ideia de ter o puzzle desmembrado é para depois poder voltar a juntá-lo. A trajectória da confissão, se considerarmos que falamos mesmo de um segredo, surge em função da necessidade de aliviar o peso da totalidade do que se confidencia em partes mais pequenas, de modo a aliviar um sujeito e partilhar essa pressão por vários.



*



Joana:  Reflectindo sobre a tua prática e na ideia de que a obra de arte poderia ser o fruto de uma troca de confidências, dirias ser pela própria obra que se revela, ao espectador, o objecto confidencial (o “segredo”)? Ou é esta obra que detém a condição confidencial desse objecto?

Beatriz C:  Não querendo erguer uma contradição, diria que na obra estão as confidências que já existiam no espectador. Isto é, quando lemos um comentário sobre algo e nos identificamos com a posição do comentador, a ideia já fazia parte de nós, simplesmente não tinha sido destacada. Do mesmo modo, a existir uma confidência entre obra e espectador, creio que provirá precisamente do destaque de uma ideia, conceito, emoção etc, - que já existia no espectador. Ou seja, as confidências surgem do trabalho conjunto entre obra e espectador, e não exclusivamente da obra, há a necessidade de uma predisposição (física, mental ou metafísica) antecedente. Ora isto abre a hipótese de a obra de arte, na sua individualidade, conter todas as confidências do mundo. Pensar nisso parece-me uma óptima maneira de procurar a universalidade que desejo no objecto artístico. Por outro lado, gostaria de sublinhar que não creio na fácil/imediata comunicação entre obra e espectador, por vezes é até difícil para mim enquanto artista estabelecer contacto com a obra. (Imaginemos ter uma obra com fortes fundações na cultura Mongol e tentarmos atingi-la enquanto sul europeus. Certamente acarretará algumas dificuldades, creio eu, até porque nem todos os artistas procuram a universalidade aquando da presença do espectador). Não creio que as peças de arte ponderem quando se nos revelar, mas sei também que não se nos revelam só por querermos. Devo concordar que todas as peças de arte registam em si os mecanismos para nos confidenciar algo, mesmo que seja um pouco da sua identidade (que outrora achávamos desconhecer), pegando no exemplo com que te escrevi.

Joana:  No teu trabalho ou na tua prática, qual é o espaço para a existência de comunhões entre um sentimento vulnerável e um sentimento destemido; um gesto confiante e um gesto inseguro?

Beatriz C:  Sinto que, por norma, ideias que carrego há muito tempo a fermentar na minha cabeça são concebidas com maior agilidade e confiança. (POR NORMA) Durante a sua concepção mental houve tempo  suficiente para oscilar na determinação com que pensava sobre os factores conceptuais e estéticos com que materializar essas ideias. Ideias para as quais tenho um prazo de concepção na iminência de terminar são também concebidas com mais vigor. Mas a existência de tempo para pensar antes de fazer por vezes é bem mais exigente e assegura muitas dúvidas. Significa isto que o processo que antecede os tais gestos determinados é uma demorada busca por respostas assertivas, por vezes incapazes de surgir na ausência da experiência prática.

Quando ponho ideias pré-concebidas em prática há indiscutivelmente uma posição que é altamente vulnerável, pela incerteza do sucesso material das ideias, mas abrindo sempre margem para a tentativa destemida que sabe que pode-se sempre "pintar por cima" e tentar outra vez. Na minha prática, dificilmente há espaço para o gesto definitivo. Este acarreta demasiado poder de decisão para o qual não tenho capacidade.


Joana:  Quando criadas as tuas personagens/criaturas, há sempre um lugar, um habitat, ideal para elas?

Beatriz C:  As criaturas têm, quase de certeza, um lugar preferencial para existir. A dificuldade da resposta a esta pergunta é que eu não sei bem se as deixo no sítio certo. Sinto que concebê-las implica uma responsabilidade; a responsabilidade do artista enquanto criador  (que abrange uma grande parcela de artistas). Será mais uma peça "em órbita" e isso deixa-me muitas dúvidas porque se a deixar no sítio errado poderei, não só ser ofensiva, como também assumir uma atitude abortiva para com ela. Isto é, escolher o(s) site specific de qualquer obra exige que nos interroguemos constantemente a fim de não impossibilitar a obra de se revelar/ocultar de acordo com a sua vontade. E, uma vez mais, estabelecer uma ligação (mesmo com uma obra criada por mim!) é por vezes um processo muito estranho e demorado, cujas instruções tendem a parecer ilógicas, mutáveis, ou até exotéricas*. Com a flor de que te falei eu sentia sempre que, a haver algo a dizer, era sempre unilateral e partia de mim, até acontecer aquele momento que contei. Isto leva-me a concordar contigo quando consideras que existe um compromisso para com a peça, porque quem é que nos diz que, inconscientemente, não estamos a condenar o seu corpo ao fogo?



*Isto parte do facto de haver um egoísmo muito grande na minha prática. As peças não "me pedem para existir", eu sinto que a sua existência é parte do meu processo terapêutico, por consequência individual e caprichoso. Ou seja, coloco a hipótese de todas estas respostas serem apenas fruto da minha cabeça e de não existir, através delas, a possibilidade da revelação/transcendência/o que quiseres chamar. Precisamente porque mais do que uma vontade, é uma atitude egoísta.






︎︎︎