(1) Corporealitis
Curta-metragem realizada, produzida e animada por Beatriz Bagulho, 2018.
Música de Afonso de Portugal
Som de Benjamim Castanheira
Voz de Madalena Rebelo
Beatriz B: Confidência
Exposição íntima a uma entidade em que se confia
Confissão? Segredos?
Diários
Escrever/desenhar em diários foi muito importante para o meu crescimento pessoal e artístico - escrevo no passado, pois foi algo que me impactou principalmente na infância e adolescência.
O diário é um confidente no qual o autor projecta um amigo, um observador exterior ou até o seu próprio futuro. É um óptimo recurso de auto-análise, auto-descoberta e gestão de emoções. Tiro muito prazer e inspiração ao reler os meus diários antigos, tornando-me na confidente do meu passado.
De facto, creio que alguém que cria e partilha as suas ideias é sempre simultaneamente confidente e realizador de confidências. Um artista guarda as confidências que colheu no leque das suas próprias experiências, e depois transforma e molda este conhecimento através das suas práticas artísticas. Tal como disseste, o artista expõe as suas confidências no seu processo de trabalho, e o ciclo fica completo.
Em resposta à tua conclusão de que é necessária a existência de um confidente para que um acto de exposição possa sequer ser realizado:
É claro que sendo o acto de confidenciar um modo de comunicação (mesmo no caso do monólogo/diário, em que se comunica consigo próprio), impõe-se à partida a necessidade de existir um comunicador e um receptor. No entanto, será mesmo necessário que este "confidente" seja identificado antes do acto se realizar? Às vezes partilhamos segredos em confidência sem sequer nos apercebermos de que o estamos a fazer, ou sem saber concretamente para quem comunicamos.
Por vezes, só depois de observarmos o que criámos com algum tempo e distância, é que compreendemos o que estávamos realmente a confidenciar.
Joana: Levantas alguns pontos tão interessantes: a questão do diário e a questão do confidente não objectivo, sem identidade. Quando pensei na relação confidência-confidente, que de facto se mantém como base do acto de confidenciar, o dito modo de comunicação, pensei na falta de contornos para este agente que recebe de nós: como continuamos a dar de nós apesar desta falta de contornos (daí a ideia de risco em não se ser ouvido, ou antes pensar num sentimentos de integridade (?) por sabermos que não estamos dependentes de uma resposta). E portanto, o teu comentário sobre a confidenciar sem sabermos que o estamos a fazer, não só mostra a diluição dos contornos do agente confidente como possivelmente o anula, e que neste caso me remete muito para essa ideia de diário, onde a nossa partilha parece estar fechada num ciclo do eu comigo mesmo.
A tua obra fez-me muito pensar neste dimensão, do eu comigo mesmo, e portanto mais do que pensar sobre a confidência vinculada à prática material (do médium), pensei sobre um processo de expansão do autor para a obra. Uma inevitabilidade, mas que no Corporealitis aparece em forma de celebração!
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Joana: Reflectindo sobre a tua prática e na ideia de que a obra de arte poderia ser o fruto de uma troca de confidências, dirias ser pela própria obra que se revela, ao espectador, o objecto confidencial (o “segredo”)? Ou é esta obra que detém a condição confidencial desse objecto?
Beatriz B: Creio que todos os estados e processos acontecem na prática artística, muitas vezes e simultâneo. O artista confidencia os seus pensamentos à matéria com que trabalha, receptor da sua confidência, a qual transforma estes pensamentos de acordo com a sua essência, tornando-se assim no próprio "segredo". A obra toma então a forma de veículo que transmite uma confidência, o "mensageiro" aberto e sujeito à interpretação subjetiva de quem a percepciona. É um constante ciclo de dedicação e fruição. Tal como referi na nossa conversa anterior, muitas vezes só no ato de criação (ou até depois de observar o que criou com alguma distância) é que o artista se apercebe do que estava a querer comunicar, e é desta vez a obra que está a confidenciar com o artista-espectador.
Joana: No teu trabalho ou na tua prática, qual é o espaço para a existência de comunhões entre um sentimento vulnerável e um sentimento destemido; um gesto confiante e um gesto inseguro?
Beatriz B: O trabalho de criação artística é, para mim, um ato de investigação e exposição, mesmo que de algo cujos contornos não possa definir à partida. Neste processo, existe sempre um vínculo entre os sentimentos de vulnerabilidade/insegurança, e a força dos gestos confiantes. É precisamente na relação e balanço entre estes dois estados que encontro a motivação para criar e prosseguir com a minha contínua aprendizagem pessoal e artística.
Embora os complexos, dúvidas e inseguranças possam ser por vezes maçadores, são também estes sentimentos que me colocam os desafios e objectivos que tento continuamente alcançar - se estivesse sempre no estado inebriante de absoluta certeza da verdade do que me rodeia, e das minhas capacidades de concretização, não teria tanta necessidade de testar os meus limites e reflectir. É também a incerteza que me incita a analisar criticamente os conteúdos que vejo e que faço, de modo a que possa continuar a crescer, tornando-me mais segura das minhas ideias. É um jogo sem fim, um dos prazeres que tiro na dedicação da minha vida à criação artística. Estou constantemente a ultrapassar as minhas próprias expectativas, questionar os meus preconceitos, e a criar novas metas e ideias nesse processo.
Joana: Podes falar um pouco sobre a dimensão fantástica e psicadélica que a tua obra Corporealitis contém?
Beatriz B: Corporealitis surge como resposta ao livro "Bodily Natures: Science, Environment, and the Material Self" de Stacy Alaimo. É um livro de filosofia feminista muito interessante, no qual se questiona a relação entre corpo, mente, a noção de individualidade e a comunhão com o exterior. O texto despertou em mim uma memória de infância, que se tornou no mote para a curta-metragem: a inocência de uma brincadeira ao espelho, na qual procurava estabelecer os contornos do meu próprio ser, através de uma interação e experienciação com o meu corpo.
Contrariamente a outros projetos de animação em que entretanto trabalhei, foi durante o processo de produção desta curta que a narrativa se foi formando, e só depois de a ter terminado é que consegui desconstruir as ideias da situação que tinha ilustrado. A meio da dança ao espelho o corpo da personagem principal decide abandonar a sua cabeça e entrar num universo paralelo, o Corporealitis, onde pode finalmente ser livre e despreocupado. Na célebre pergunta "se te separassem a tua cabeça do teu corpo, és o teu corpo ou a tua cabeça?", seguimos um percurso anti-cartesiano e convivemos brevemente com os corpos soltos e dançantes desta dimensão fantástica. A personagem atravessa para o outro lado do espelho, mas deixa a sua mente para trás, e podemos assim vislumbrar a eterna festa dos corpos sem cabeça.